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Um taxista para dois Pritzkers

Um taxista para dois Pritzkers

Moram ambos no mesmo prédio, trabalham em diferentes ateliers mas no mesmo condomínio de escritórios e ambos receberam o mesmo Prémio Pritzker. Álvaro Siza Vieira em 1992, Eduardo Souto de Moura em 2011. São os mais famosos arquitetos portugueses e têm obras por todo o mundo. Algumas em conjunto. Já receberam prémios das mãos do ex-Presidente Obama, da Rainha de Inglaterra e do Imperador do Japão.

Nunca perderam a humildade dos génios nem o prazer de uma boa conversa. Divertem-se com os amigos e, suprema ironia, gozam com as piadas de um sobre o outro. Juntá-los parece fácil mas, como viajam muito, a agenda tornou difícil este encontro. Souto de Moura diz que às vezes só sabe do vizinho de casa e do escritório pelos taxistas. Aparece sempre algum que lhe diz “ontem transportei o seu amigo”. Mas Siza conta uma história ainda melhor:

“A minha irmã Teresa tem uma espécie de taxista privativo e há tempos chamou-o para me levar a casa. No dia seguinte perguntou-lhe: Então como foi a viagem com o passageiro de ontem? Resposta pronta: Correu bem. É um senhor muito simpático e até o achei muito parecido com o arquiteto Siza Vieira!…” Contam estes episódios sem perder o fio da conversa nem o profissionalismo que colocam em tudo o que fazem. Exigentes no ofício mas descontraídos no trato. Ambos aceitaram o desafio do presidente da Antarte, Mário Rocha, para desenhar um móvel. Souto de Moura vai projetar uma cómoda e Siza um bar. Diz Álvaro Siza Vieira que prefere fazer uma peça onde se possam guardar alguns vícios preciosos: Álcool e tabaco. Nos próximos números da “Design for Life” mostraremos o esboço e o desenvolvimento de ambos os projetos. Para abrir o apetite partilhamos a conversa que começou com umas fotografias ao fim da tarde em Serralves e se prolongou por um jantar no restaurante preferido de Eduardo Souto de Moura: O Gaveto, em Matosinhos.

“A Praça de Liege” é o título de um belo romance de Rebordão Navarro mas ninguém estranharia se lhe mudassem o nome para Praça Pritzker porque aqui vivem Álvaro Siza e Eduardo Souto de Moura. A Praça foi assim chamada pelo povo do Porto em homenagem aos belgas da cidade de Liege que resistiram heroicamente aos invasores no início da Grande Guerra. O livro de Rebordão Navarro conta a história de uma praça cosmopolita da Foz com um clássico jardim ao meio, onde toda a gente se conhece e convive tranquilamente até que um dia um cidadão estrangeiro desaparece e fica a dúvida se ele era um general desertor das tropas inimigas ou um espião ao serviço de uma das partes em conflito na Europa….

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Além de amigos, cúmplices e vizinhos de casa, Álvaro Siza e Eduardo Souto de Moura, mestre e discípulo, são também vizinhos de trabalho porque têm os respetivos escritórios no mesmo condomínio de ateliers com magníficas janelas sobre a marginal do Douro. Souto de Moura projetou o prédio da Praça de Liége, Álvaro Siza fez o dos escritórios em que trabalham. Mas nesta história dos dois mais extraordinários arquitetos portugueses há um episódio que resume melhor a relação de ambos. Um dia a sogra de Souto de Moura encontrou um grupo de estudantes estrangeiros no Algarve. Perguntou-lhes o que vinham fazer a Portugal e eles responderam que eram alunos de arquitetura. Conversa puxa conversa e um deles explicou que estavam apenas a aproveitar a praia porque o objetivo final da visita era chegar ao Porto para ver Álvaro Siza e estudar as suas obras. É meu cunhado, respondeu ela com um sorriso cúmplice, disposta a ajudar. Mas outro estudante do grupo acrescentou: Também queremos ver a obra de Souto de Moura. Esse é meu genro!… acrescentou a sogra de Eduardo. Nessa altura um estudante do grupo não se conteve e respondeu: E eu sou sobrinho do Papa. Este episódio contado por Álvaro Siza entre duas gargalhadas mostra como ambos se divertem. Porque Souto de Moura acrescenta logo.
“Quando conheci a minha futura mulher ela perguntou-me: – O que é que fazes? – Sou arquiteto. – Onde trabalhas? – No escritório do Siza. – É meu tio…”

Eduardo Souto de Moura confessa que não imaginava. Casou com uma sobrinha do seu mestre, também arquiteta, e olha ainda hoje para Álvaro Siza com a admiração dos primeiros tempos. Numa entrevista dada ao jornal El Mundo quando Siza teve um acidente doméstico, Souto de Moura declarou: “Tenho duas notícias para dar. Uma má e outra boa. A má é que o arquiteto Siza caiu em casa numa escada feita por mim. A notícia boa é que ele já recomeçou a desenhar com a mão esquerda!…” Lembro este episódio a ambos como pretexto para a conversa de hoje e Siza larga o cigarro para comentar: “Sabe que a minha mão esquerda era uma mão sem vícios nem automatismos no traço”. Souto de Moura acrescenta: “Eram desenhos belíssimos. De uma pureza excecional! Ainda um dia gostava de os publicar. Já tenho título: Desenhos para a mão esquerda!” Como os concertos de Ravel escritos para a mão esquerda do irmão de Wittgenstein que era pianista e tinha perdido a mão direita… acrescento… deixando fluir a conversa entre ambos como se fosse música.

O encontro para esta entrevista estava prometido há algum tempo. Há anos que tenho sempre notícias de um pelo outro. Siza diz-me com frequência: O Eduardo contou-me que vocês almoçaram e… E Souto de Moura também: Sei que foi jantar com o Siza… mas é raro encontrarmo-nos os três para jogar conversa fora. Às vezes meto Álvaro Siza no meu carro e deixo-o fumar. Ele deixa-se conduzir. Um dia fomos os três visitar o Museu Nadir Afonso a Chaves (uma das melhores obras de Siza, disse Souto de Moura) mas Eduardo viajou noutro carro. Quando estávamos a estacionar, lado a lado, Souto de Moura desabafou: “Devem ter sido 150 km de má língua…” E foram. Dentro das regras do bom gosto. Porque Siza quando não gosta de uma obra não diz mal. Limita-se a perguntar: “Como é que conseguiu fazer isto?!…” Souto de Moura dá uma daquelas fantásticas gargalhadas ao falar da ironia do mestre mas, como lhe conhece todos os truques, já não se deixa apanhar.

Siza fez, aliás, uma pergunta estranha durante o jantar: “Vi ali um cartaz que tinha esta frase “Infinito Vão”. Vocês sabem explicar-me o que quer dizer?” “É o slogan da exposição que está na Casa da Arquitetura”, respondo e arrependo-me logo porque basta olhar para a cara de Souto de Moura para perceber que Siza estava a brincar!… Souto de Moura depositou o seu espólio na Casa da Arquitetura mas Siza doou parte do seu a Serralves. As divergências são públicas e não causam nenhum tipo de embaraço entre ambos. Souto de Moura fez uma casa para Manoel de Oliveira que o cineasta recusou. O caso foi parar a tribunal. Entretanto, Siza acabou por desenhar a nova Casa do Cinema para o espólio de Manoel de Oliveira na antiga garagem de Serralves. Souto de Moura não foi à inauguração mas já visitou a obra e gostou muito. “A Presidente de Serralves convidou-me para almoçar e eu disse-lhe que queria ver a Casa feita pelo Siza…. A Ana Pinho foi simpatiquíssima e acompanhou-me na visita…” Tão simples como isto. A relação entre Siza e Souto de Moura é tão sólida que resiste a todas as divergências e só ganha com elas. Porque é irónica, estimulante, cúmplice, criativa e irresistível para quem gosta de ambos. A única crítica que Souto de Moura não aceita é quando eu lhe digo: “Você é excessivamente educado!… Esse é o seu maior defeito!…” Como, aliás, se pode perceber ao ler esta entrevista.

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