O Traço a correr o risco na cidade
Desenha. Deseja. Desagua na brancura do papel para projetar cidades impossíveis. Ana Aragão corre o risco de se confundir com o seu próprio traço. Há no seu gesto criador a firmeza do feminino fervilhar. Traça minúsculos movimentos. Minuciosas arquiteturas. Milimétricas ruas que definem magnificas praças. Tudo com a subtileza do corpo. Mãos fixas no olhar com que prolonga a linha do horizonte, Ana projeta-se a si própria numa espécie de memória descritiva para a geometria transposta pelo olhar. E quando a cidade surge – «como o pássaro sem asas» do poema de Vinícius a sobrevoar o plano «onde antes só havia chão» – os desenhos de Ana são pura anatomia. Vê-la desenhar bairros sucessivos ou fachadas impossíveis com janelas que se abrem para infindáveis geografias é um convite a viajar pelo mundo de súbito exposto na parede. Não há muros para transpor só jardins suspensos de um estirador que quase se transforma em estante. E livros. Há letras no meio dos prédios. Pedaços de um texto que ela vai escrevendo como se fosse um roteiro literário para ler o Mundo. Um guia de viagens íntimas. Um capítulo secreto e um índice final das grandes obras primas da nossa arquitetura. Sem prefácio nem aviso prévio. Chega-se aos desenhos de Ana Aragão e sente-se o labirinto percorrido. Percebe-se que ela desenhou as cidades do futuro como se fossem as primeiras pedras do antiquíssimo prazer de habitar a substância do tempo.
O verso de Sophia torna-se aqui na cidade que esperávamos como se fosse tudo perfeito. Parece aquele dia inicial inteiro e límpido em que emergimos do caos urbanístico e do espanto silenciado para concluir que os desenhos da Ana não precisam de assinatura.
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Publicado na DESIGN FOR LIFE #3