Um prémio Nobel da Paz, José Ramos-Horta
É um sobrevivente. Sobreviveu várias vezes. Além de um tiro à queima roupa com que o atingiram na sua própria casa em Timor, José Ramos-Horta sobreviveu à invasão indonésia e a vários atentados com que procuraram anular a sua intervenção diplomática internacional. Fugiu de Timor dois dias antes da chegada das tropas de Suarto. Era uma espécie de ministro dos negócios estrangeiros de um país ocupado e um embaixador itinerante no exílio quando ganhou o Prémio Nobel da paz. Sobreviveu a viajar pelo mundo fora e a tentar por Timor Leste nas notícias. Sem ele Timor não teria sido independente. Com a Independência voltou a ser Ministro dos Negócios Estrangeiros. Desta vez de facto. Foi também Primeiro-Ministro e Presidente da República. O que pouca gente sabe é que um dia, há muitos anos, o jovem Ramos-Horta estava na carroçaria de uma camioneta, estacionada no alto de uma ravina, à espera que o condutor e o ajudante regressassem quando teve um pressentimento: Esta caranguejola vai despenhar-se sozinha por aqui abaixo. Pensou e saltou da carroçaria. Só teve tempo de se levantar para ver a camioneta a deslizar sozinha pela montanha. Mais tarde teve outro episódio semelhante. Também saltou antes de um jipe se despenhar. É mesmo um sobrevivente. Não é crente, nem acredita em milagres. Confessa, no entanto, que uma vez, de passagem por Coimbra, sentiu curiosidade em visitar a Irmã Lúcia. Teve que pedir autorização ao Papa, mas o encontro no Carmelo foi inesquecível.
Confirmou aí que a Igreja Católica e a Irmã Lúcia sempre se interessaram pela causa de Timor. “Foi uma conversa diferente de todas as outras que tive até hoje com personalidades internacionais”, diz ele sem se tornar místico ou contrair qualquer tipo de fé religiosa. Só acredita na Paz possível. Ramos-Horta esteve na Herdade da Rocha, no Crato, a inaugurar um Monumento à Paz em sua homenagem. E foi neste Retiro da Paz que deu a entrevista que se segue.
Ramos-Horta disse na inauguração do Retiro da Paz, aqui na Herdade da Rocha, no Crato, que passa a vida a falar de Paz pelo Mundo inteiro e que o Mundo está cada vez menos pacífico. Está mesmo convencido disso?!
– Sim. E não é só por causa do Donald Trump!… Agora está na moda atribuir a culpa de todos os males do mundo ao Trump, mas já na presidência de Obama houve vários falhanços e um excesso de expectativas.
As expectativas sobre Obama eram tantas que lhe deram o Prémio Nobel da Paz ao fim de uma ano de presidência… Se calhar deviam ter-lhe dado o Nobel da Literatura como prémio para os seus discursos.
– É verdade. Lembro de me ter encontrado com ele em Nova Iorque e de lhe ter pedido para não nos desiludir.
Foi uma conversa séria ou de circunstância?
– Foi num encontro à margem da Assembleia Geral das Nações Unidas. Obama reconheceu-me a foi bastante efusivo. Eu olhei-o nos olhos e, falando em inglês, naturalmente, disse-lhe de caras: Senhor Presidente, não nos traia. O Senhor não pode desiludir-nos.
E ele respondeu à sua mensagem?
– Obama olhou também firmemente para mim e respondeu: vamos trabalhar juntos para isso… Não estava a dizer que iria trabalhar comigo porque eu sou apenas uma pequena peça, naturalmente, mas a garantir que queria trabalhar pela Paz com toda a comunidade internacional….
Mas ficou muito longe das suas previsões?!
– Eu acho que Obama e Clinton fizeram pouco pelo combate à pobreza, que é sempre a melhor forma de trabalhar pela paz.
Faz o mesmo balanço das administrações de Clinton e de Obama
– A administração Obama foi bastante multilateralista. Privilegiou as Nações Unidas e a Aliança Atlântica, entendeu-se bem com os líderes europeus (sobretudo com Cameron e Merkel, menos com Sarkozy), mas Obama presidiu à maior modernização das armas nucleares. Quer os Estados Unidos, quer a Rússia reduziram o arsenal nuclear, mas na presidência de Obama assistiu-se à grande sofisticação desse arsenal nuclear. Em contrapartida, sou obrigado a reconhecer que a administração Bush fez mais no apoio ao desenvolvimento, sobretudo em África, com contributos mais fortes no combate à sida e à malária.
Mas prefere os Democratas ou os Republicanos na Casa Branca?
– Eu tenho muito boas relações com os Democratas e boas relações com os Republicanos, mas já não alinho em cantigas que sugerem que os Democratas são bons e os Republicanos são maus. Isto independentemente de George W. Bush ter provocado algumas catástrofes.
Como a guerra no Iraque que Ramos-Horta apoiou numa determinada fase.
– Eu não apoiei a intervenção americana no Iraque. Eu escrevi um artigo no New York Times a apelar a George W. Bush para dar mais duas semanas a Kofi Annan antes de atacar Bagdade. E afirmei a seguir que nem todas as intervenções armadas unilaterais são erradas se estiver em causa um genocídio.
Voltando à primeira pergunta da Sara sobre o seu apelo à paz e a sua própria constatação de que o mundo está cada vez menos pacífico, quais são, neste momento, os pontos mais perigosos do globo?
– Eu diria que o fenómeno do extremismo religioso fundamentalista de cariz muçulmano que pratica o terrorismo além fronteiras é o maior perigo para o mundo.
Nesta matéria nós ainda não vimos tudo.
– Quando participei numa reunião da Asean Regional Forum à porta fechada e afirmei para quem estava dentro da sala que a minha grande preocupação com a Paz era a evaporação do Daesh na Síria. Aquelas mulheres dos chamados combatentes do Daesh depois da aparente rendição do seu exército foram para aldeias, cidades e campos de refugiados onde se vão comportar como bombas ao retardador.
Tal como aconteceu com o exército de Sadam Hussein no Iraque ou já tinha acontecido com a Frente Islâmica de Libertação na Argélia…
– Exato. Aquele pessoal, e sobretudo aquelas supostas viúvas, aquelas mulheres de combatentes – melhor dizendo, aquelas gajas – vão para os campos de refugiados e para os respetivos países continuar o seu combate.
Não está a ser excessivo?
– Não. Aquilo é tudo planeado para a nova guerrilha. É a multiplicação das redes de terrorismo. Estão a transferir a guerra para outros tabuleiros. Eu disse nessa intervenção da Asean que eles iriam provocar uma guerra de atritos e foi exatamente essa a expressão (atrition war) que o líder do Daesh utilizou quando saiu da Síria. Espero que os serviços de inteligência e de informação estejam atentos a esta falsa rendição.
Sabe que em Portugal também se discute como vão ser repatriados alguns familiares ditos arrependidos de combatentes do Daesh. Tem alguma recomendação a fazer ao governo português?
– Não me atrevo a dar conselhos. O governo português e os governos europeus sabem o que devem fazer. Além disso, a Europa tem valores que não permitem combater com o mesmo nível de asquerosidade que eles. Mas todo o cuidado é pouco. É preciso ser muito prudente porque nós ainda não vimos tudo. O perigo não tem fronteiras. Além disso a imprevisibilidade no Médio Oriente é total. E o resto do Mundo, principalmente a Europa, sofrerá as consequências.